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terça-feira, setembro 04, 2007

 

Entrevista à revista "Noticias Magazine", 05.08.2007

Deixo aqui arquivada a entrevista a Cláudia Moura (Noticias Magazine de 05.08.2007), dado que a revista não está acessível através da net.
Extrema-unção para uma profissão em acelerada metamorfose. Em poucos meses o assédio e compra de editoras com décadas no mercado varre o mundo editorial. Os grandes grupos tragam os editores independentes e os gestores “profissionais” pontificam sobre literatura. Ainda é bom ser editor? Nelson de Matos esta sentado numa poltrona, ao colo, evidentemente um original. Arcádia, Moraes, Dom Quixote e Âmbar dá 33 anos de edição e o título de grande editor dos autores portugueses contemporâneos. A continuar…

A compra da Caminho por Paes do Amaral e prováveis despedimentos suscitou polémica. A ninguém ocorre que a editora do prémio Nobel português se veja obrigada a vender por enfrentar dificuldades financeiras.

Penso que foram problemas de gestão, de qualquer forma, enquadra-se na lógica inevitável da formação de grupos editoriais com alguma força e capacidade de intervenção, como é o caso do de Paes do Amaral, que tem comprado várias empresas, tanto quanto sei com uma estratégia ainda não clarificada.

Terá pelo menos o objectivo de concorrer com a Porto Editora, líder de mercado por causa do livro escolar.

Disse-se que a estratégia era constituir um grupo forte na área do escolar mas já se diluiu esse objectivo porque a Caminho, por exemplo, não é escolar.

O livro escolar é um negócio sazonal, talvez queiram autores fortes no resto do ano.

Não sei, mas parece-me uma estratégia ainda pouco clara.

De qualquer maneira, como se explica que a editora de um prémio Nobel aceite vender? O negócio do livro está assim tão difícil?

Continua a ser um negócio de permanente conquista de “pontinhos”. Agora é ponto quatro, depois consegue ser ponto cinco. É esperável algum desemprego na área da edição nos tempos mais próximos. Existem, que se saiba, três grandes grupos em actuação.

Está a falar de Paes do Amaral, do grupo Bertelsmann e…?

Exactamente. O grupo de Paes do Amaral que já comprou (que eu saiba…) a Texto, a ASA, a Caminho, mantendo contactos com outras; o Grupo Bertelsmann com o Círculo de Leitores, a Bertrand, a Quetzal, a Temas e Debates, tendo agregada uma cadeia de mais de 40 livrarias; e o grupo Explorer que se identifica em torno da ex-Editorial Noticias (actual Casa das Letras), a Oficina do Livro, várias livrarias, e que está também a negociar com outras editoras. Isto significa que não vai haver 10 contabilidades em cada grupo, 10 sedes, 10 departamentos de produção, etc. e que muitas pessoas serão consideradas excedentárias. É inevitável, como aconteceu com outras industrias.

Enquanto as outras editoras estão a ser tragadas pelos grandes grupos aparece notícia de que o Nelson de Matos vai avançar em nome próprio.

Parar era absurdo. Dei-lhe o meu nome porque os meus amigos e alguns autores acharam que isso tinha algum peso. Era uma forma de dizer que vou fazer uma edição com um estilo próprio, como se tivesse um autor, com assinatura, trabalhando em nichos do mercado de que os grandes grupos não se ocupam. E também sem outra ambição que não seja publicar uma meia dúzia de livros por ano.

Mas já disse que hoje é difícil a sobrevivência de uma editora independente. Está à procura de um capitalista?

Não. Pensei ir construindo a empresa à medida que o mercado me fosse desafiando.

Isso significa voltar a misturar as actividades de proprietário/gestor com a de editor literário. O antigo modelo ainda funciona?

Se eu fizer uma editora artesanal, não sinto outras responsabilidades para além das que se prendem com a minha própria capacidade de investimento. Se tiver capacidade para investir em três livros faço três livros, se não faço só dois. E estou ocupado.

Quando foi para a Âmbar havia esperança de que os autores o seguissem?

Se existiu essa esperança só podia ser da parte Ambar, que ao convidar-me esperasse que eu arrastasse alguns autores. A verdade é que os autores da Dom Quixote tinham contratos que eu próprio tinha feito, com condições e regras que não facilitavam essa mudança. E depois havia ainda a vontade, ou não, dos autores…

Sabia que não podiam sair?

São autores importantes da nossa literatura, com obras vastas, não era fácil que eu os convencesse a correr o risco de trazer essas obras para um lugar onde não existia um histórico relevante nessa área de trabalho.

Quando saiu da Moraes e levou os autores para a Dom Quixote ainda eram “principiantes”?

Não exactamente. Mas não tinham ainda o número de títulos que alguns deles hoje possuem. Há coisas que não se repetem. Há que ser realista. Aquilo que aconteceu nessa altura foi porque muitos desses autores estavam ainda no início das suas carreiras. Hoje era difícil transferir 10 títulos de cada autor, mais as contas-correntes de direitos que lhes estão agregadas. Era uma responsabilidade grande, não estando eu, como então estava, numa editora de minha propriedade.

Ao sair da Dom Quixote houve um corte abrupto. É difícil construir tudo outra vez?

Com alguns autores nunca se perde a relação construída; ainda hoje, não sendo eu já o seu editor, continuam a dar-me a ler os originais e eu continuo a comentá-los mesmo sabendo que depois irão ser publicados noutro lado. Muitos deles não entregam o livro à sua editora sem antes o discutir comigo, o que é evidentemente muito gratificante.

Explora a net à procura de novos autores, nos blogues por exemplo, ou são mais as pessoas que vêm ao seu encontro?

Ambas as situações, às vezes sou eu que os desafio.

Como fez com a Inês Pedrosa há alguns anos.

Exactamente. Eu tinha-lhe dito: “Tens que te atrever, tens que dar o passo seguinte e escrever um romance”, e ela um dia, em sua casa, sem aviso prévio, lembro-me perfeitamente que era um sábado, deu-me um lápis e disse: “Aqui está”.

Quis pô-lo a ler o original logo ali?

Isso. E eu passei a tarde a ler o livro e dali saiu “A Instrução dos Amantes”, o seu primeiro e belo romance.

Dá sempre o seu parecer? Não pensa: “Este tipo já é muito famoso, não posso estar para aqui a dar palpites”?

Dou, dou. E todos, ou quase todos, admitem comentários. Faço sugestões de trabalho, ou perguntas que os obrigam a reflectir, ou digo simplesmente: “tropecei aqui, ou ali …” mas nunca indico soluções, isso é o trabalho de cada um.

Mas é capaz de dizer: “Eu embirro com esta palavra”?

Digo que tropecei ali, faço umas cruzinhas a lápis, ao lado. Chamo-lhes a atenção e eles ou aceitam, ou não, os meus comentários. As soluções são deles. Às vezes sou um pouco mais radical e digo: “Este livro na generalidade não me agradou e acho que está longe do que já fizeste”.

Já mandou para trás um original de alguém com nome firmado?

Já, claro. Digo que o livro precisa de mais trabalho. É sempre um momento delicado, é preciso dizer palavras com cuidado e com a sensibilidade adequada. Mas um editor, mesmo quando em postura critica, está sempre do lado do seu autor, e o autor precisa dessa companhia do seu editor. Sou um leitor treinado e consigo às vezes antecipar coisas que o autor, estando tão envolvido, tem maior dificuldade.

Como gere as propostas de amigos aspirantes a escritores?

Digo-lhes que a literatura não é um trabalho de “inspirações” como dantes nos ensinavam na escola. Exige um enorme trabalho de concentração sobre as palavras, exige que se façam muitas versões. Às vezes digo que o livro tem algumas qualidades mas que está longe de ter condições para ser publicado. A maior parte acaba por desistir, não vão para a frente porque não têm condições para escrever duas ou três versões de um mesmo texto, não têm paciência. Mas às vezes sou mal sucedido, digo isto a um escritor e ele vai e publica o livro noutra editora.

Como aconteceu com a Margarida Rebelo Pinto.

Mais ou menos. É uma história antiga. Li o livro da Margarida, disse-lhe que tinha muitas qualidades mas assinalei-lhe que o original precisava de mais algum trabalho. Ela não julgou assim, quis publicar o livro imediatamente, teve grande sucesso, ainda bem.

Qual é a grande frustração da sua história como editor? Ter perdido o Saramago?

O que me dói não é ter perdido o Saramago, isso é normal no trabalho de um editor, mas o facto de ele contar sempre mal essa história. Publiquei livros do José Saramago, na Moraes, numa altura em que ele não era ainda um autor de culto, antes pelo contrário, ninguém o lia. Um dia apareceu-me com o Levantado do Chão e eu disse-lhe que não tinha condições financeiras para o continuar a publicar. Tinha o armazém cheio dos seus livros anteriores, que não se vendiam, e a Moraes estava em péssima situação financeira. Mas nada disto tinha a ver com o texto ou sobretudo com ele. O Saramago terá imaginado depois que eu tinha sido pressionado politicamente para não o publicar, uma confusão desagradável. Se há coisa a que nunca cedi na minha vida, e já o provei em diversas circunstâncias, foi a pressões - politicas ou outras. Não tive sequer medo de passar alguns meses com as persianas desta casa permanentemente fechadas, quando aceitei publicar os Versículos Satânicos do Salman Rushdie.

Quais foram as pressões?

Recebi ameaças de morte, telefonemas, faxes, mensagens anónimas, não podia saber se eram falsas ou não. Estive seis meses de polícia à porta na editora. E publiquei também o livro de Rui Mateus, muito crítico para o Presidente da República em exercício naquela altura. Ou um livro sobre Camarate que também não foi fácil. Mostrei por várias vezes que se há coisas que não permito são pressões sobre o meu trabalho, ou sobre a independência das minhas decisões.

Hoje tem um “pendente” com dois grandes nomes da literatura portuguesa, o Saramago e o Lobo Antunes.

Não, de todo. Tenho todo o respeito pelo Saramago, gosto dele como escritor e cumprimento-o sempre que o encontro. Temos uma relação cordial, sempre evitámos abordar pessoalmente esta questão. Com o António Lobo Antunes não tenho nenhuma questão pendente. Saí da Dom Quixote em circunstâncias desagradáveis e que foram públicas na altura, o António Lobo Antunes decidiu nunca me telefonar, nunca mais até hoje me contactou. Não tenho nada “pendente”, nem com um nem com o outro.

Foi afastado da Dom Quixote ao fim de 23 anos e apenas dois anos e pouco depois saiu também da Âmbar.

Quando vendi a Dom Quixote ao Grupo Planeta, vieram dois gestores espanhóis com quem reparti a gestão e as coisas correram optimamente durante 4 anos. Um dia, como me foi dito, o Grupo Planeta decidiu “nacionalizar” a gestão, entregando-a a um senhor que veio recrutado da Gilette. Este senhor chegou à Dom Quixote e não fez por menos: pretendeu desde logo ocupar o meu lugar. Achou certamente: “Então eu venho para aqui como gerente mas quem dá nas vistas, quem escolhe os livros, quem se relaciona com os autores, quem dá entrevistas, é ele?!”. Fez guerra, dificultou-me a vida, acabou por perder, não sem antes destruir completamente uma equipa de trabalho que eu havia formado e uma empresa que estava a funcionar com o sucesso que é conhecido.

E a Âmbar? Há um certo silêncio sobre o assunto.

A Âmbar não tinha tido antes muita sorte na sua área editorial, tinha um catálogo frágil, muito desarrumado e tinha pessoas desanimadas e desorientadas por falta de uma estratégia consistente. Gosto de dizer que lhes deixei a casa arrumada. Fiz-lhes um catálogo, pus de lado o que não prestava, criei linhas de trabalho para futuro e colecções novas. A estrutura comercial era frágil, feita pelos seus próprios meios, deixei-os nas mãos de uma conceituada distribuidora profissional, e alterei de modo sensível o seu posicionamento junto do mercado e da comunicação social. Mostrei-lhes um caminho. Faltou-lhes paciência para insistir e aguardar os resultados.

Os gestores estão a matar os editores?

Quando não sabem respeitar a especificidade do trabalho dos editores.


É pior um gestor da actualidade do que aquele administrador que reunia com um revólver em cima da mesa?

(Grandes risos) Se esse homem ainda existe deve rir-se quando se repete essa história. Estamos a falar de 1975, do chamado Verão Quente, o jornal O Século, que era proprietário da Moraes e era controlado pelo MRPP, nomeou um dos seus trabalhadores, afecto a esse partido, para co-gestor da Moraes. Aparecia-me às quintas-feiras para a chamada reunião da administração. Abria uma daquelas bolsas que então se chamavam mariconeras, tirava um revólver, punha-o sonoramente em cima da mesa, fazia-o rodar, ia brincado com aquilo e dizia: “Ora mostre lá que livros vai publicar no próximo mês”...

É obviamente forçada a comparação mas a situação em que um editor se vê agora é também de uma grande tensão.

A estrutura das empresas editoriais vai sofrer correcções, ainda não aconteceu com muita força mas vai acontecer a partir de agora. As empresas em que o editor está no centro das decisões, que são empresas familiares na maior parte dos casos, em que tudo o que se faz é feito através da paixão e do respeito pelos livros...

Já não podem existir?

Existe a lógica dos grupos editoriais que nomeiam para a gestão outro tipo de pessoas. O lugar do editor ficou subalternizado. Chegando ao final do ano, ou a empresa apresenta os resultados esperados ou, se os não tem, é porque eu não sou certamente o editor adequado e terei de ser substituido. Passou a existir uma enorme rotatividade dos editores com uma enorme descaracterização dos respectivos projectos editoriais. Um editor hoje pode durar três anos ou quatro meses. As empresas querem resultados imediatos. São impacientes. Isso leva também a que o grau de exigência das escolhas editoriais diminua, ao nível do grande regozijo quando se apanha um livro como o de Carolina Salgado.

Mas o Nelson de Matos não é um Velho do Restelo que se posiciona contra a lógica dos grandes grupos. Como se equilibram as coisas?

Equilibrando-as. Gerindo-as delicadamente, respeitando os leitores e autores exigentes com quem vivemos estes anos todos; aceitando, por outro lado, a entrada no mercado de leitores e escritores menos exigentes, mais populares, e concedendo-lhes o espaço a que têm direito. O livro tem obrigação de competir com todas as outras formas de ocupação dos tempos livres. Temos de saber explicar às pessoas que ler é uma experiência fundamental.

Como é que o editor “com assinatura” pode não ser engolido por este mercado?

Deve continuar a fazer o seu trabalho mas abrir-se a outras experiências dirigidas aos vários segmentos de mercado. Porque em muitos casos, por exemplo, hoje já nem temos livrarias mas “Centrais de Compra”, com jovens técnicos cuja experiência livreira se foi consolidando com o Harry Potter, o Paulo Coelho, o Dan Brown e todos esses best sellers. Se lhes apresentamos um livro de José Cardoso Pires, por exemplo, são capazes de dizer: “Dê-me trinta para eu espalhar aí pelas lojas”, trinta para todas as lojas, claro! Temos de lidar com estes fenómenos novos, temos que ser capazes de funcionar nas duas vertentes.

Os editores estão em fuga para a frente, publicam compulsivamente verdadeiros nados-mortos só para manterem alguma visibilidade.

É verdade, hoje publicam-se mais de mil títulos novos por mês….

Parece que há uma batalha entre editores e livreiros. As livrarias só pagam a 120 dias, exigem do editor percentagens cada vez maiores e muitos editores estão excluídos das cadeias de venda porque não fazem livros de grandes públicos.

E têm que pagar o espaço de exposição. O livro está como o iogurte, tem um prazo de validade cada vez menor e tem de ser substituído com maior rapidez. Ao fim de uma semana ou vendeu ou vai para trás. A taxa de mortalidade dos livros novos é elevadíssima. A solução passa pela constituição de grupos e pelo aumento da força negocial dos editores e distribuidores. É por isso que digo que nem tudo é mau, quando falo dos grupos.

Do que depende hoje o sucesso de um livro? Do montante investido em estratégias de comunicação?

É. Quando se consegue boa comunicação são os leitores que pressionam para que o mercado funcione sob a pressão da procura.

Pode ter uma obra superior que não se vende porque o editor não investiu na comunicação?

Ou se consegue visibilidade ou não existe. Não se dá por ela no meio do ruído e da confusão existente…

As montras podem ser compradas. E os tops dos livros? Os números de vendas para entrar no top são diferentes em cada ponto de venda.

Não me atrevo a dizer que são comprados mas são pelo menos pouco rigorosos. Num hipermercado preciso de vender muito mais do que numa Bertrand para chegar ao top. Há situações equívocas como as livrarias que pertencem a editoras ou os jornais que estão ligados a editoras e a livrarias. Há uma certa promiscuidade. Devia existir uma entidade isenta, como se faz, ou fazia, com os discos. Eu já tive nos tops um livro de Mário Cláudio que ainda não tinha sido publicado.

A feira internacional de Frankfurt exemplifica o estado do mercado. Há livros que ainda nem sequer estão escritos e cujos direitos se vendem em leilão a preços astronómicos.

No passado, o adiantamento que se pagava no momento da assinatura do contrato era uma parcela dos direitos totais que o autor haveria de receber em função das vendas. Actualmente temos que fazer como as equipas de futebol, paga-se X milhões pelo jogador e depois vamos ver se ele não fica doente, se ele funciona, se tem os ossos todos inteiros, etc.. Aqui é a mesma coisa, paga-se por um autor um valor que às vezes não corresponde a coisa nenhuma a não ser à aquisição daquele nome para o meu catálogo.

Quer dizer que pode ser um fiasco, que pode nem sequer haver retorno nas vendas?

Em certas circunstâncias, as empresas comportam-se como se não pudessem prescindir daquele título, porque me trás imprensa, notoriedade, outros autores, ou para que não seja a concorrência a publicá-lo.

Ainda há encantamento na profissão de editor?

Acho que sim. Pelo menos eu ainda o sinto. Fiz grandes e saudosos amigos nesta área de trabalho, aprendi nela tudo, ou quase tudo, o que sei da vida, tive a honra e o prazer de editar alguns dos mais importantes escritores do meu país, continuo a trabalhar com a mesma emoção. As dificuldades actuais apenas significam que o mundo também mudou para a edição, temos que nos habituar às mudanças, aceitando umas, contrariando outras.

Lembra-se de repente de algum desses amigos?

Lembro-me imediatamente do Zé Cardoso Pires que acompanhou os meus 30 anos de trabalho na edição. É uma pessoa de quem sinto permanentemente a falta. Muitas vezes penso: “O que é que o Zé diria disto, o que é que faria?”, porque estava habituado a ouvi-lo reagir, sempre. Lembro-me também muito do José Gomes Ferreira. Ia ter comigo à Moraes e depois descíamos o Chiado de braço dado com as pessoas a cumprimentá-lo e ele a perguntar: “Quem é? Quem é?” E eu a dizer: “As pessoas cumprimentam-no porque conhecem os seus poemas, Zé Gomes…”. Depois chegávamos ao metro, levava meia hora para tirar do bolso uma nota de 20 escudos dobrada em quatro: “…que a Rosalia me deu antes de sair de casa…”. Nunca soube lidar com dinheiro. Mas é certamente por eles serem pessoas diferentes que conseguem escrever o que escreveram…

Uma vez disse que era um poeta frustrado. Também se sente frustrado por ajudar a construir o sucesso dos outros tendo hipotecado o seu lado de escritor?

Eu disse isso? Não me lembro. Deixei de escrever literatura e de fazer critica literária quando vim para a edição. Há muitos casos de editores a quem isso aconteceu. Passava o dia a ler e a conviver com escritores. Depois do trabalho que fazia sobre os seus textos era impossível chegar a casa e escrever os meus. Se outros o fazem melhor do que eu... Não tenho nenhum ciúme ou frustração, não é isso. Fiquei bloqueado como escritor embora continue a sentir, às vezes, saudade de escrever. Mas fico feliz com as obras dos outros. Provocam-me emoção, alegria, não inveja. Às vezes apetece-me escrever mas depois lembro-me do que eu próprio lhes digo, que não se é escritor um dia, ou de vez em quando, tem de se escrever a vida toda.

Sente uma grande emoção ao descobrir um novo livro ou autor para publicar?

Estou a ver ali em cima da mesa o último romance de Luandino Vieira, que já não publicava há alguns anos. Tantos anos de silêncio e depois escreveu aquela coisinha pequena, que está ali em cima da mesa. Fui comprá-lo numa atitude desplicente. Quando abri o livro e li o primeiro parágrafo vieram-me as lágrimas aos olhos. Não porque ele relatasse uma história comovente, apenas porque é tão belo que me comoveu. É de uma beleza dolorosa. Demorou vinte anos a trabalhar aquela escrita, aquelas palavras inventadas.

Avalia os livros à primeira página?

É muito irregular. Às vezes na primeira linha conhece-se um escritor, outras vezes o título é suficiente. Aquele que estou a ler agora perturbou-me um bocado porque não gostei, não engrenei. Levei trinta páginas a pensar que o autor estava a derrapar e de repente o livro abriu e foi por ali fora. Vou dizer-lhe: “Agarra nas trinta primeiras páginas e escreve-as outra vez”.

Se fosse de um desconhecido não tinha chegado à página 30?

Talvez não. Nós vivemos num mundo de cor, de luz, de música, de sons, de movimento. Quando se pega num livro ou ele nos conta uma história que agarrra o leitor desde as primeiras linhas ou, não sendo a história, o que é que o livro tem para nos prender? A beleza da sua narração, a novidade da sua escrita. Alguma coisa tem que nos agarrar. Ou o que nos é contado ou a forma como nos é dito. Se um escritor desprezou as duas coisas e nunca mais avança nem recua na história e usa uma linguagem vulgar e descuidada, pagamos-lhe na mesma moeda: pomos o livro de lado.

Sofreu a morte do seu filho pequeno, perdeu a sua editora, sobreviveu a dois cancros e até a um grande desastre de comboio…

É verdade, foi um acidente muito sério, salvei-me porque sujei as mãos com o jornal que ia a ler, quando vinha a Lisboa fazer exames, e fui lavar as mãos à casa de banho. Era a primeira carruagem de um comboio rápido, quando consegui sair ileso da casa de banho é que vi os feridos e mortos à minha volta.

Entre perdas e ganhos, qual a atitude que tem aos sessenta e dois anos, outra vez a preparar-se para recomeçar?

Consigo dominar essas marcas, sou um homem tranquilo. Embora às vezes algo frenético. Também acho que devo estar a ficar mais chato, porque me apanho mais vezes a contar histórias.

E não vai escrevê-las?

Isso dá muito trabalho. Mas é verdade que os editores portugueses fazem pouco isso, escrever as suas memórias. Lá fora, ao contrário, faz-se muito. Convivemos com tantas pessoas especiais... é pena que isso se perca.
Cláudia Moura

Comments:
Gostei muito da entrevista. Força para os novos projectos. Um Abraço.
 
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